terça-feira, 19 de julho de 2016

O lançamento de granadas no Polígono

No meu curso de oficiais milicianos diversas vezes os instruendos se deslocaram a um terreno nos arredores de Vendas Novas pertencente à Escola Prática de Artilharia a fim de fazerem exercícios de tiro e de lançamento de granadas.
No caso do meu pelotão o instrutor era um jovem tenente de quadro permanente que manejava as armas com grande desenvoltura.
Num determinado dia o meu pelotão marchou em fila dupla do quartel até ao Polígono, assim se chamava a referida carreira de tiro. Aí chegados o nosso instrutor informou-nos de que iríamos fazer um exercício despoletando e lançando granadas. Encaminhou-nos então para uma trincheira existente com algumas dezenas de metros de comprimento e com a profundidade de cerca de 1,60 metros. No extremo dessa trincheira havia um espaço subterrâneo onde nos reuniu e onde dissertou sobre as granadas que iam ser deflagradas.
Depois convidou-nos a ocupar a trincheira seguindo metade do pelotão à sua frente e a outra metade atrás dele. Eu fazia parte do último grupo. E a dada altura iniciou o lançamento das granadas com ele próprio a fazê-lo e todos os instruendos abrigados na trincheira  ao mesmo tempo que esclarecia o que ia acontecendo.
No decorrer da prova alertou-nos que a próxima granada a ser lançada era de grande potência e que não nos admirasse-mos com o estrondo que provocaria ao explodir.
- Vai ser um estrondo dos antigos !
Mas não foi. Nenhum barulho se ouviu, uma vez que a granada não explodiu.
Fiquei preocupado com a situação, pois a sua explosão poderia acontecer a qualquer momento, uma vez que a granada já estava despoletada. Poderia até acontecer quando saíssemos da trincheira, o que seria muito perigoso, pois a parte metálica das granadas com a sua deflagração estilhaça-se em inúmeros pequenos pedaços atingindo tudo que exista à sua volta.
Para os humanos essa situação é muito perigosa uma vez que com a força da explosão esses estilhaços penetram profundamente nos seus corpos.
Mas o tenente explicou que não havia problema. Que seguidamente iria fazer deflagrar uma outra granada e que o sopro da explosão desta, por simpatia, faria explodir a que não tinha rebentado.
Não ficando muito convencido de que tudo correria com a facilidade que o tenente tinha dito resolvi, por isso, caminhar lentamente, meio curvado, até ao referido retiro subterrâneo no fim da trincheira. Fi-lo contudo com alguma dificuldade porque a minha deslocação não era fácil uma vez que entre a posição onde me encontrava até ao referido retiro estavam inamovivéis alguns colegas meus, embora outros já se movimentassem nesse sentido, à minha frente.
O tenente fez o que prometeu. Lançou outra granada que provocou uma violenta explosão. Mas da granada anterior nada, no imediato só se ouviu silêncio. A sua explosão verificou-se alguns momentos depois dentro da trincheira onde permanecia o instrutor e parte dos instruendos.
Quando eu já estava no abrigo ouvi então uma enorme gritaria vinda dos que foram atingidos por essa última explosão que, mais tarde, concluí terem sido nove instruendos.
A última granada lançada para o exterior da trincheira ao explodir com o sopro do seu rebentamento fez com que aquela que não havia deflagrado rebolasse até à trincheira, acabando por rebentar aí, praticamente no meio do tenente e dos meus camaradas.
Gerou-se então uma grande turbulência. Os atingidos pelos estilhaços queixando-se com gritos alucinantes de dôr e alguns que haviam sido feridos na cabeça e na cara, com o correr do sangue pelos seus olhos, imaginavam, desmoralizados, que os seus ferimentos eram muito mais graves do que na realidade eram e pediam a presença das suas mães, julgando-se no fim dos seus dias.
Ajudei no que pude bem como todos que não foram atingidos, ficando com o meu fardamento todo ensanguentado quando procurei amparar e acalmar os meus colegas feridos.
O tenente ligou para o Quartel e solicitou três ambulâncias. Todos os nove feridos puderam então ter os primeiros cuidados médicos e quando as ambulâncias iam partir para o Hospital, nessa altura, o tenente mandou que um sargento conduzisse, em formatura, para o quartel os restantes soldados cadetes do meu pelotão. Foi, depois disso que ele (o tenente) retirando um braço todo ensanguentado que tinha ao peito por dentro de um blusão de couro, referiu que precisava também de tratamento por ser um dos atingidos.
Dos nove feridos quatro foram depois levados para Lisboa de helicóptero para o hospital militar. Os outros e o tenente puderam ser tratados em Vendas Novas.
Dos quatro evacuados para Lisboa só dois é que voltaram para a Escola Prática de Artilharia. Os outros dois sobreviveram ao acidente mas, devido às mazelas que sofreram, foram desobrigados do cumprimento do serviço militar obrigatório.
No fim destas histórias reais que contei, resolvi fechar este meu livro com o dramático exercício de despoletamento e lançamento de granadas no Polígono de Vendas Novas. Desta maneira quero lembrar aos meus leitores o que afirmei no introito deste livro: a vida humana é uma comédia mas não deixa de ter também períodos difíceis, dramáticos, acabando sempre numa tragédia.

segunda-feira, 18 de julho de 2016

A passagem de ano de 1970 para 1971

A cidade de Bissau no tempo em que lá cumpri uma comissão obrigatória entre 1970 e 1972 regurgitava de movimento nas ruas, onde era claramente notada a população branca.
Dado o clima de guerra existente, todos os dias recordado pelas evacuações de feridos e mortos vindos do interior do território e por vezes porque era perfeitamente audível em Bissau o bombardeamento das artilharias que, com o rebentamento das suas granadas, provocavam o retinir dos vidros das janelas, as pessoas viviam com um sentimento de insegurança.
Sentimento que se tornou maior quando houve uma tentativa por parte das forças do PAIGC de alvejar com mísseis os depósitos da Sacor, em Bissau. Não acertaram no alvo, mas o sibilar dos mísseis foi por todos ouvido ao passarem pelos céus da cidade.
Pela insegurança e pelo isolamento em que se vivia, relativamente a familiares e amigos, os portugueses sentiam uma grande necessidade de convívio, de estabelecer laços humanos entre eles.
No meu caso pessoal frequentava com a minha família, nas noites de quarta-feira o batalhão de engenharia onde se realizava, semanalmente, um jantar convívio. Aos sábados, geralmente, deslocavamo-nos até à piscina do Clube de Oficiais e em outros dias da semana, por vezes, havia festas de aniversário ou simples recepções em casas de famílias das nossas relações.
Uma das casas que frequentávamos muito era a do engenheiro Lourenço Pinto, chefe dos Serviços de Obras Públicas da Guiné, casado com a Etelvina Moritz, ambos naturais da Torre de Moncorvo em Trás-os-Montes, muito amigos da minha mulher.
Em nossa casa organizava-mos somente algumas pequenas festas, sobretudo em ocasião de aniversários, dado que não tínhamos cozinheira sendo a nossa alimentação garantida pela Messe de Oficiais.
A casa do engenheiro Lourenço Pinto era frequentada praticamente por todas as pessoas com responsabilidades na vida administrativa da Guiné. Lá encontrávamos o Secretário-Geral (segunda figura do Governo do território ) e diversos chefes de serviço (o mais alto posto da hierarquia do funcionalismo público). Mas também lá encontrávamos pessoal do Serviço de Obras Públicas de várias categorias, incluindo a de capataz, bem como comerciantes e outros elementos da população civil.
Com a família do engenheiro Lourenço Pinto também passávamos as festas de Natal e de Ano Novo. O salão de festas da Associação Comercial de Bissau foi o palco da nossa passagem de ano de 1970 para 1971. Fomos convidados para essa passagem de ano por um comerciante de Bissau que fazia parte da direcção da referida associação.
A festa, conforme o referido comerciante teve a amabilidade de me explicar, seria abrilhantada toda a noite por um conjunto cabo verdiano conhecido mas havia um problema: não existia serviço de "buffet".
Os participantes teriam de levar de suas próprias casas algumas bebidas e alimentos que depois se exporiam e de onde cada qual se serviria.
Aceitei o amável convite e, com a minha mulher, começámos a pensar na nossa contribuição para a ceia de passagem de ano. Conversei sobre o assunto com o alferes Santos que comigo colaborava nos Serviços de Reordenamentos Populacionais. Devido à sua formação em agronomia, ele era o responsável também pela agro-pecuária do batalhão de engenharia.
Quando lhe falei no meu problema, despachado como era, disse-me logo:
- Não se preocupe Capitão. Eu resolvo-lhe isso.
Nem eu nem a minha mulher nos preocupámos mais com o caso. No dia 30 de Dezembro lembrei-lhe o que me tinha garantido. Respondeu-me que não estava esquecido. Que às oito horas da noite do dia seguinte mandaria entregar, da minha parte, na Associação Comercial dois patos assados com arroz. Não falhou. De resto era próprio da sua maneira de ser respeitar escrupulosamente o que se combinava com ele.
Nós levámos duas garrafas de vinho, uma garrafa de whisky e sobremesas.
Os patos do alferes Santos estavam com muito bom aspecto e óptimo paladar. Comeu-se toda a noite, bebeu-se, dançou-se. Eu sou um fraco dançarino, mas o salão de festas estava super lotado. Os pares mal se podiam mexer o que me favoreceu muito. Por outro lado o engenheiro Lourenço Pinto, enlaçado à sua mulher, sempre que passava por mim incentivava-me.
Foi uma linda festa, embora não me recorde de, alguma vez, me ter acontecido uma passagem de ano em que tivesse de contribuir com produção alimentar própria.
Alguns dias depois agradeci ao alferes Santos a sua colaboração e pretendi reembolsá-lo das despesas. Explicou-me, nessa altura, que por erro da sua escrita na relação das existências na agro-pecuária do batalhão de engenharia tinha dois patos a menos do que aqueles que na verdade existiam na capoeira.
- Com a morte daqueles dois patos foi a maneira de acertar as minhas contas.
Era um bom amigo o alferes Santos. Sendo natural do Cartaxo, no Ribatejo, dançava muito bem o fandango.

Nota: Esta história faz parte do livro "Memórias da Guiné" do mesmo autor, de onde foi transcrita.

domingo, 17 de julho de 2016

As verbenas de Bragança

Iniciei a minha vida profissional, como já referi anteriormente, em Bragança.
A viagem do Porto para esta cidade transmontana foi-me muito agradável. Fi-la de comboio, uma parte pela linha do Douro com vistas panorâmicas de rara beleza sobre o rio do mesmo nome e a outra parte pela linha do Tua também muito paisagística.
Cheguei a Bragança ao cair da noite de um dia no final do mês de Abril de 1957.
A cidade, há muitos anos, era relativamente pequena. Acabava praticamente logo depois do edifício dos correios que ainda hoje existe no mesmo local.
Bragança era constituída pelo seu centro histórico desenvolvendo-se ao seu redor uma pequena mancha de construções modernas. Cheguei como disse no final do mês de Abril de 1957. Já não havia frio. As temperaturas da região já eram nessa altura relativamente moderadas.
O que me impressionou mais na cidade foi a população feminina. Era notoriamente constituída por um número superior ao dos homens.
Sempre que havia uma festa, um ajuntamento qualquer que fosse, era notória a preponderância das mulheres. A razão principal disso acontecer seria por Bragança não ter, nesse tempo, grandes oportunidades de emprego para os homens., pelo que eles, procurando trabalho, abandonavam na juventude a sua cidade.
Por outro lado, como Bragança não disponha de qualquer escola superior os lugares de chefia e de outras posições intermédias das repartições do Estado eram preenchidos normalmente por indivíduos com formação adquirida nas grandes cidades como Lisboa, Porto ou Coimbra.
Quando fui colocado em Bragança, vindo do Porto, eu tinha apenas vinte anos de idade. E nos primeiros dias levei na cidade transmontana uma vida muito recatada, ocupando o meu tempo a trabalhar pois as minhas relações pessoais eram muito poucas resumindo-se praticamente aos meus companheiros de mesa da pensão onde me instalei.
Em Maio, contudo, tive conhecimento que numa Alameda, perto do Liceu, tinham sido iniciadas umas verbenas, festas populares com música gravada.
Resolvi por isso numa certa noite ir até lá.
Andava eu, sozinho, gozando o novo acontecimento da cidade quando ouço no altifalante da festa o anúncio de um disco que me era dedicado nestes termos:
- Ao senhor engenheiro Fernando de Pinho Valente um grupo de admiradores dedica-lhe o seguinte disco:
E logo de seguida se fez ouvir uma canção espanhola muito em voga: o Beija-me mucho cantado por uma jovem intérprete.
Fiquei, dada a minha natural timidez pouco  vontade com a situação criada. Ainda assim permaneci na verbena até que a música deixasse de se ouvir.
Mas, depois, calmamente abandonei o local.
Mais tarde descobri quem foram as autoras da ideia.
Na Direcção de Urbanização de Bragança onde fui colocado exercia também funções um desenhador, já na meia idade, que com o seu sétimo ano dos liceus ( actual décimo primeiro ano) sendo bom em matemática era explicador dessa disciplina. Dos seus explicandos fazia parte nessa altura um grupo de raparigas que, com os seus 16-18 anos de idade se preparavam para o exame do quinto ano dos liceus ( nono ano de hoje) no intuito de entrarem na Escola do Magistério Primário.
E foram algumas dessas raparigas que sabendo pelo referido desenhador o meu nome resolveram dedicar-me o referido disco.
A Escola do Magistério Primário era a única oportunidade na sua cidade que os estudantes do Liceu de Bragança tinham para continuarem os seus estudos.
Era uma escola com muito frequência, na sua grande maioria de raparigas.
Um colega meu chamava-lhe o viveiro das trutas. Muitas vezes me convidou a dar um passeio até à Escola Normal ( também assim chamada ) para ver as raparigas à saída do viveiro, que eram na verdade na sua grande maioria mulheres bonitas e fisicamente jeitosas.

sábado, 16 de julho de 2016

A prova de orientação

A quando do cumprimento obrigatório do meu serviço militar em 1958 tive de frequentar, como já referi anteriormente, o curso de oficiais na Escola Prática de Artilharia, em Vendas Novas, no Alto Alentejo. Desse curso faziam parte diversas disciplinas e exercícios de campo.
Um desses exercícios foi o de orientação. Acampados num terreno arborizado nos arrabaldes de Vendas Novas pelas 10 horas da noite de certo dia tocou a reunir e os diversos pelotões formaram-se prontamente.
Depois de verificado que todos os soldados cadetes estavam presentes o Comandante da Companhia informou-nos que naquela noite se iria realizar um exercício de orientação.
Foram-nos dados um mapa da região, uma bússola e um foco. Cada pelotão foi encaminhado para o seu unimog (veículo militar de transporte) onde os seus elementos foram obrigados a entrar.  Depois os unimogs arrancaram e cada um seguiu, pela noite fora um caminho diferente.
O que levava o meu pelotão, depois de percorrer alguns quilómetros por estrada acabou por entrar num caminho de terra batida e de estacionar num descampado.
Aí fomos descarregados e foi-nos dito que, agora, o regresso ao acampamento era por nossa conta, isto é que teríamos de regressar sem nenhuma ajuda ao local de onde partíramos a pé naquela noite fria de Inverno.
A seguir os instrutores meteram-se no veículo e foram-se embora. Ficamos sós com um mapa, uma bússola e um foco cada um.
Do meu grupo, como acontece normalmente em quase todos os grupos, logo houve alguns dos meus companheiros que afirmaram saber onde nos encontrávamos e qual a direcção que havia de ser seguida para chegarmos a Vendas Novas. Um desses líderes, tendo nascido em Goa, era descendente de indianos. Julgo que pertencia até a uma casta elevada e era tão inteligente como vaidoso.
Ao longo da sua vida foi professor universitário, ocupou cargos de responsabilidade no Estado e nas Misericórdias.
Logo conseguiu juntar à sua volta um numeroso grupo que se prontificou a segui-lo. Eu, na periferia do ajuntamento, tinha pouca vontade de o acompanhar, não porque duvidasse da rota traçada por ele mas porque pensava que caminhar a corta-mato em direcção a Vendas Novas não seria boa ideia, naquela altura, porque tinha chuvido muito nos dias anteriores, a terra estava enlameada e os ribeiros e riachos corriam cheios, impossibilitando a sua passagem a vau.
Enquanto cogitava sobre a situação um colega de origem alentejana, um pouco mais alto do que eu mas francamente mais gordo perguntou-me:
- Tu vais com eles ?
Respondi-lhe:
- Eu, não.
- Então qual é a tua ideia ?
- Eu vou seguir os rodados do unimog até à estrada e depois caminho por ela até ao acampamento. Desse modo não me perdirei e acabarei por chegar são e seco. Poderei chegar tarde mas chegarei.
- Tens um companheiro de viagem. Eu vou contigo.
Todos os outros foram partindo a corta-mato e nós os dois ficámos para trás. Depois seguimos os rodados do unimog.
Ao fim de uma boa caminhada acabámos por chegar à estrada nacional. Pouco depois de lá chegarmos vislumbramos uma placa de sinalização que dizia: Vendas Novas 22 Km.
Sem tropeções, em terreno seguro, sem lama nem lençóis de água caminhámos os dois a noite toda.
Falámos da nossa vida, do que pretendíamos fazer no futuro. Falámos da nossa família, das nossas namoradas, das nossas dúvidas, das nossas esperanças caminhando durante toda a noite.
Quando nos sentíamos cansados, principalmente por causa do meu companheiro que era pesadote, sentávamo-nos nos muros que delimitavam a estrada dos terrenos particulares quando os havia e nos marcos hectométricos implantados nas bermas da via rodoviária. E chegámos secos e sem lama ao Bivaque. Chegámos já com dia, muito cedo, cerca das seis horas e meia da manhã.
Encaminhámo-nos logo para cozinha para nos aquecermos e para bebermos qualquer líquido quente e comer, porque a viagem tinha sido longa e desgastante. Depois procurámos saber dos outros elementos do nosso pelotão.
Não tinham chegado ainda. Acabaram por chegar pelas sete horas da manhã, todos enlameados e molhados. A rota que tinham traçado estaria correcta. O problema é que encontram diversas linhas de água que não puderam atravessar nessa rota, procurando fazê-lo mais a montante no que perderam imenso tempo. O chão estava por sua vez toda empapado em água tornando a sua passada difícil e demorada.

sexta-feira, 15 de julho de 2016

A noite de S. Martinho

No dia de S. Martinho de 1958 estava eu em Vendas Novas aquartelado na Escola Prática de Artilharia.
A minha camarata era constituída por oito beliches, quatro de cada lado com as cabeceiras encostadas às paredes laterais. Entre os beliches havia um espaço (corredor) que ia da porta de entrada até à única janela existente na parede posterior.
O meu beliche era ocupado por mim na parte inferior e na parte superior dormia uma camarada meu que, embora da minha idade, isto é com vinte e dois anos já tinha uma grande falta de cabelo.
Por brincadeira antes de adormecermos fazia-lhe uma festa na careca, atitude que o enervava mas que eu repetia sempre.
A instrução militar era muito cansativa. Passávamos o dia a mudar de fardamento, ora para a ginástica, ora para a luta corpo a corpo ora para os "crosses" pela planície alentejana, ora para a ordem unida... Era um corrupio. Entre os intervalos das diversas instruções mal tínhamos tempo para despir o fardamento e vestir o que se imponha na hora seguinte.
Também o esforço físico era permanente o que me trazia exausto.
Na noite do dia de S. Martinho de 1958 eu, que nunca tive grande apreço pelas bebidas alcoólicas, resolvi descansar pelo que não solicitei licença de recolher. Dos dezasseis cadetes da minha camarata fui o único que não pedi essa licença.
Deitei-me cedo, num enorme silêncio, enquanto todos os outros resolveram ir beber uns copos nessa noite.
Cerca da meia-noite desse dia, quando regressaram fizeram algum barulho mas eu dormindo profundamente não dei por nada.
Animados, como vinham, resolveram pintar-me um grande bigode e um pêra com a tinta de engraixar as botas. Com mercúrio-cromo também me pintaram de vermelho a ponta do nariz e as maçãs do rosto sem ter dado sinal de vida.
Continuei a dormir pesadamente. Disseram-me, no dia seguinte, que a única reacção que tive foi a de fungar pelo nariz com algum ruído devido possivelmente ao cheiro da tinta e do mercúrio-cromo.
Quando tocou a alvorada levantei-me lesto como sempre pois o tempo para a formatura do pequeno almoço não demoraria muito e antes teria de tomar um chuveiro diário de água gelada, de me barbear, pentear e escovar os dentes e, claro, de me fardar convenientemente.
Só quando cheguei ao balneário, olhando-me no espelho é que tomei consciência da figura em que estava. Fartei-me do vocifrar para gáudio dos meus colegas. E tratei de limpar as pinturas que me haviam feito como pude.
Os meus colegas esses riam com o meu enervamento e desespero na tentativa de remover as pinturas de que tinha sido objecto.

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Cantiga da rua

A história que vos vou contar passou-se numa terra muito pequena, numa aldeia perdida na Beira Interior que se chama S. Pedro do Rio Seco.
Outrora havia por lá um riacho que hoje já não existe. Secou.
S. Pedro do Rio Seco é uma terra de pastores e agricultores.
Entre os rapazinhos que eu conheci, quando por lá passei, havia dois que são os principais protagonistas desta história: o Carlinhos, filho de um lavrador abastado e o Zé Pequeno, filho de um ferreiro.
O Zé Pequeno era um rapazinho triste e enfezado que andava sempre agarrado a umas muletas, porque não tinha força nas pernas.
O Carlinhos, esse era muito saudável de rosto sempre afogueado, de tronco encorpado e nádegas avolumadas. Tinha uma cara gaiata que em certas ocasiões me fazia estalar o riso.
Muitas vezes brincávamos no meu quintal onde havia uma coelheira com muitos coelhos e também uma cabrinha que, servia em certas ocasiões, de cavalo de guerra.
Outras vezes brincávamos em casa do Carlinhos que era grande e recheada de tudo. Quase sempre, quando lá íamos, éramos convidados para comer uma lauta merenda onde entre outras coisas entravam figos, nozes, pão com marmelada...
Em outras ocasiões juntávamo-nos na casa do Zé Pequeno onde com curiosidade, seguíamos os trabalhos em ferro que o seu pai executava.
Nós esforcávamo-nos sempre por alegrar o Zé Pequeno na frente do seu pai, que era um homem que trabalhava horas a fio à bigorna e a malhar e cortar ferro até ficar exausto de cansaço.
Falava pouco o Tio Zé Ferreiro e nunca o vi sorrir. Mas também nunca ninguém o ouviu lamentar-se da sua triste sorte.
Certo dia, próximo do Natal, ele nos confidenciou que o seu pensamento, a sua ambição era juntar o dinheiro necessário para que o seu filho entrevado pudesse libertar-se das muletas fazendo uma operação à coluna vertebral.
Pelas contas dele ainda faltavam dois anos de duro trabalho para atingir a quantia em dinheiro necessária para poder pagar as despesas da operação do Zé. Mas havia de o conseguir e então o seu filho deitaria corpo, far-se-ia forte e poderia ajudá-lo na ferraria.
Eu fui para casa a pensar nas palavras do Tio Zé Ferreiro e contei o que ouvira dele aos meus pais. Eles logo me deram uma nota de mil escudos (cinco euros) para ajudar nas despesas da operação.
Quis correr para casa do Zé naquela noite para lhe entregar os mil escudos, mas os meus pais não mo consentiram e, por isso, tive de me deitar.
No dia seguinte, de manhã cedo, fui acordado por uma barulheira enorme. Era um acordeão que se ouvia. Lembrei-me logo do Carlinhos que tinha um acordeão e da sua música preferida: A Cantiga da Rua.
Lá estava a Cantiga da rua. Comecei a perceber e a distinguir a música, só não entendia por que seria que o Carlinhos andava tão de manhãzinha acordando com a sua cantiga toda a gente daquela pacata aldeia, meio perdida na Beira Interior.
- Eh Carlos ! Porquê tão cedo ?!
O Carlinhos vinha mais afogueado do que o costume e os seus olhinhos espertos brilhavam muito.
Ele disse-me qualquer coisa à toa. Falou em Zé Pequeno... operação... dinheiro.
Também não precisava de dizer mais nada porque eu percebi logo tudo e atirei-lhe com a minha nota de mil escudos.
O Carlinhos continuou a sua marcha, tocando no acordeão a sua música preferida:
Cantiga da rua
De todas diferente
Não é minha, não é tua
É de toda a gente.
E foi percorrendo todas as ruas de S. Pedro do Rio Seco e parando em todas as casas.
Andava penosamente porque o acordeão era enorme tendo em vista a sua pequena estatura. Parecia uma pintura de um autor célebre, com o seu cabelo negro em desalinho, a sua face afogueada e o olhar esperto.
A todos que encontrava dizia sempre à toa algumas palavras das quais sobressaiam: Zé Pequeno... operação... dinheiro.
E tocando o seu acordeão aquele rapaz que eu conheci, quando passei por S. Pedro do Rio Seco, conseguiu juntar o dinheiro suficiente para poupar ao Tio Zé Ferreiro muitos dias de trabalho insano e de lhe trazer ao rosto um breve sorriso contido naquele distante Natal.

Nota: Esta história aconteceu na vida real, mas num contexto diferente daquele que descrevi e com outra canção e outros intervenientes.

quarta-feira, 13 de julho de 2016

Os trabalhos de topografia

Na minha vida profissional procedi a diversos levantamentos topográficos quer para a execução de projectos de vias rodoviárias e de abastecimentos de água a populações quer para a implantação de edifícios.
Utilizava nesses trabalhos um taqueómetro, aparelho destinado à obtenção e registo dos elementos necessários ao cálculo de distâncias e de desníveis e ao desenho dos levantamentos topográficos (plantas, perfis longitudinais e transversais).
O referido aparelho é munido de uma luneta que permite ver à distância como um binóculo.
No decorrer desses meus trabalhos de campo algumas vezes me deparei com situações curiosas.
Certa vez em Bissau, na Guiné, prestando serviço para a Empresa Tecnil, tive de proceder ao levantamento topográfico de uma apreciável área de terreno, tendo em vista a implantação no local das novas instalações da referida empresa.
No fim da tarde, com o trabalho terminado, tive a ideia de fazer algumas miradas sobre os arredores do lugar algo ermo e pouco frequentado onde me encontrava. E aconteceu-me a certa altura deparar com um longínquo grupo de jovens mulheres negras e mulatas completamente nuas tomando banho num riacho. Fiquei surpreendido com tal aparição e por alguns momentos não deixei de gozar o espectáculo que elas proporcionavam.
Pude perceber que se tratava de um grupo de lavadeiras de roupa que, depois de executarem o seu trabalho, se banhavam no riacho, todas nuas, para se refrescarem possivelmente pelos seus corpos estarem transpirados devido ao trabalho que haviam efectuado ao calor inclemente da Guiné.
De outra vez estava eu a executar o projecto de uma estrada municipal entre Lamego e Resende, na região do Douro, acompanhado de um topógrafo quando tive outra divertida surpresa.
Depois de ter implantado no terreno diversas bandeirolas definindo a directriz de parte da referida estrada regressei à estação onde operava o referido topógrafo.
Encontrei-o sozinho a rir-se, soltando sonoras gargalhadas. Pensando que o meu colaborador tinha "pirado" perguntei-lhe o que se passava com ele.
- Venha, venha ver ! Foi a sua reposta.
Aproximei-me do taqueómetro, olhei pela luneta e o que vejo: uma jovem rapariga, lá longe com as mamas de fora do corpete, quando tentava atravessar uma corrente de água. A travessia dessa corrente fazia-se caminhando por uma espécie de barragem constituída por calhaus rolados.
A rapariga desequilibrava-se ao caminhar por cima dos calhaus e como era dotada de seios volumosos os mesmo com a ginástica que tinha de fazer para se aguentar de pé na passagem da levada, libertavam-se do "soutien" e saiam cá para fora. Por mais que ela tentasse acomodá-los no interior da roupa nada conseguia pois, desequilibrando-se, eles voltavam a aparecer à luz do dia.
Também me ri com a situação. Depois passei o taqueómetro ao meu companheiro que continuou a seguir a rapariga por alguns minutos e a rir-se como um desalmado.